C. S. Lewis e a Doutrina do Inferno (C.S. Lewis and the Doctrine of Hell)

O Racionalista Romântico, Apêndice 1

…o caminho mais rápido para o Inferno é aquele que é gradual–um leve declive, um caminho suave, sem curvas abruptas, sem marcações e sem placas.

            C. S. Lewis, Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz

Lewis disse muitas coisas profundas e fascinantes sobre o inferno. Algumas delas com precisão bíblica, outras mais abstratas e sujeitas à incompreensão. Em alguns casos, sua perspectiva não conta com a solidez da Bíblia. No entanto, muitas das suas opiniões sobre o inferno são verdadeiras à Escritura, e algumas de suas especulações oferecem material interessante para nossa meditação.

O inferno: grave injustiça ou justiça máxima?

Romantic Rationalist in PortugueseLewis disse em O grande abismo: “Só há duas espécies de pessoas no final: os que dizem a Deus, ‘Seja feita a Tua vontade’, e aqueles a quem Deus diz: A tua vontade seja feita”.1

Obviamente, Deus não permite que a vontade das pessoas seja completamente feita; é claro que o homem rico em Lucas 16 queria sair do inferno, mas não conseguiu escapar de lá. O ponto de Lewis é que quando alguém diz: “Não quero relacionar-me com Deus”, nesse sentido limitado, sua vontade é cumprida. O “desejo” do descrente, de permanecer longe de Deus, se transforma em seu pior pesadelo.

Apesar disso, quem não quer a Deus deseja a bondade e a felicidade. Entretanto, o que torna qualquer coisa boa é Deus. O texto de 2 Tessalonicenses 1.9 contém a seguinte descrição do inferno: “Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor”. Se Deus retirar sua presença de um lugar, não pode haver bondade ali. Assim, nos termos de Lewis, o descrente recebe o que quer — a ausência de Deus —, mas com ela recebe o que não quer: a ausência de todo o bem.

C. S. Lewis disse, quanto ao inferno: “Não existe doutrina no cristianismo que eu gostasse mais de remover do que esta, se tivesse esse poder. Mas ela tem o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das próprias palavras de Nosso Senhor; foi sempre mantida pela cristandade; e está fundamentada na razão”.2

A maior parte do que Lewis diz aqui é solidamente bíblico. A possível falha em sua lógica é compartilhada por muitos de nós. Gostaríamos que o inferno não existisse — e imaginamos que isto provenha do nosso senso de bondade e gentileza. Apesar de Deus poder remover o inferno, ele escolheu mantê-lo. Temos mais confiança na nossa bondade que na dele?

E o que se deve fazer com Apocalipse 18.20, texto em que Deus derrama sua ira sobre o povo da Babilônia, e diz: “Exultai sobre ela, ó céus, e vós, santos, apóstolos e profetas, porque Deus contra ela julgou a vossa causa!”? Isso não indica que no céu veremos os horrores do pecado claramente e teremos convicções muito mais fortes sobre a justiça do inferno?

O inferno não é agradável, atraente ou estimulante. Ainda assim, ele não é mau; trata-se do lugar onde o mal será julgado. Se a condenação ao inferno é um castigo justo, na verdade, a ausência do inferno seria má.

O inferno é moralmente bom porque o Deus bom deve punir o mal

A maioria de nós imagina odiar a ideia do inferno por amar demais as pessoas e não querer contemplar seu sofrimento. Contudo, uma implicação dessa ideia é que Deus ama menos essas pessoas do que nós. Nossa repulsa é compreensível, mas o que nos incomoda tanto em relação ao inferno? Será a punição da maldade? Ou o sofrimento de quem poderia ter se voltado para Cristo? Ou recuamos por considerar os castigos do inferno maus ou desproporcionais? Estas respostas diferentes revelam conceitos diferentes acerca de Deus.

Talvez odiemos o inferno por não detestarmos o mal como deveríamos. Eis uma ideia, no pensamento de Lewis, que poderia ter sido mais bem desenvolvida. Pode-se dizer o mesmo de muitos de nós.

Se considerarmos o inferno uma reação exagerada da parte de Deus ao pecado, negamos o direito moral de Deus de aplicar a punição contínua sobre qualquer pessoa. Quando se nega o inferno, também se nega a extensão da santidade divina. Quando se minimiza a seriedade do pecado, diminui-se a graça de Deus no sangue de Cristo vertido por nós. Afinal, se os males pelos quais ele morreu não são significativos o suficiente para justificar o castigo eterno, talvez a graça demonstrada na cruz não seja significativa o suficiente para justificar nossa adoração eterna.

Como Jesus enxergava o inferno

Na Bíblia, Jesus falou mais sobre o inferno que qualquer outra pessoa. Ele se referiu ao inferno como um lugar real (v. Mt 10.28; 13.40-42; Mc 9.43-48). Descreveu-o em termos vivos: um fogo que queima, mas não se apaga, um verme que não morre e que consome os condenados, e uma escuridão solitária e opressora.

Alguns creem no aniquilacionismo, a ideia de que os habitantes do inferno não sofrerão para sempre, sendo ao final consumidos como parte do juízo — assim sua “morte eterna” significa deixar de existir. Edward Fudge, no livro e DVD intitulados The Fire That Consumes [O fogo consumidor], defende essa posição, também advogava por John Stott. É um argumento que tenho considerado com seriedade. Ele se encaixa bem com grande parte da revelação do AT, mas é difícil conciliá-lo com as palavras de Jesus: “E irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna” (Mt 25.46). Ou com as palavras de Apocalipse 20.10, que mencionam o lançamento de Satanás e dois seres humanos, o Anticristo e o falso profeta, no lago de fogo e “... serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos”. A descrição de Apocalipse 14.11 parece se aplicar a um número grande de pessoas: “A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos”.

Jesus diz aos não salvos: “... serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8.12). Ele ensinou que, no inferno, um abismo instransponível separa os ímpios dos justos, no paraíso. Os ímpios sofrem terrivelmente, permanecem conscientes, retêm a memória, desejam alívio, mas não conseguem encontrar conforto, não podem deixar o tormento e não têm esperança alguma (v. Lc 16.19-31). Em suma, o Salvador não poderia ter pintado um retrato pior do inferno. C. S. Lewis, com relutância, creu nessa descrição e a afirmou, curvando-se em submissão à autoridade maior.

Ele afirmou: “Não conheci ninguém que não cresse no inferno e também tivesse uma crença no céu viva e vívida”.3 Os ensinos bíblicos sobre os dois destinos ficam em pé ou caem juntos. Quando a Escritura menciona o céu e o inferno, cada lugar é retratado como igualmente real, e em algumas passagens, um tão permanente quanto o outro.

A amiga de Lewis, Dorothy Sayers, apresentou a questão dessa forma:

Parece haver um tipo de conspiração para esquecer, ou encobrir, a origem da doutrina do inferno. A doutrina do inferno não é uma ‘invenção medieval’ para assustar as pessoas e fazer com que dessem dinheiro à igreja: ela é o julgamento consciente de Cristo sobre o pecado. [...] Não se pode repudiar o inferno sem repelir a Cristo por completo.4

O problema de Emeth em A última batalha

De vez em quando, Lewis parecia fugir um pouco da doutrina do pecado, supondo coisas não encontradas na Escritura e contradizendo aparentemente outras coisas ditas de modo explícito.

Em A última batalha, o soldado Emeth, que serviu ao demônio Tash, é bem-vindo ao céu, mesmo sem ter servido a Aslam, a figura de Cristo, por nome. Pelo fato de o jovem pensar que estava adorando e seguindo ao Deus verdadeiro (emet é a palavra hebraica para fidelidade ou verdade), Aslam disse a Emeth: “Criança, [...] todo o serviço que tens prestado a Tash, eu o considero como serviço prestado a mim”.

Alguns usam a passagem para acusar Lewis de universalismo, apesar do fato de os outros escritos de Lewis reprovarem esse ataque. No entanto, a passagem implica que Lewis cria em uma forma de inclusivismo — segundo o qual, em certos casos, pessoas mentalmente responsáveis que não abraçaram a Cristo na vida podem ser salvas em última instância. Assim, o critério para a salvação não seria crer em Jesus aqui (Jo 1.12; 14.6; At 4.12; Rm 10.9,10). Em vez disso, em alguns casos, Deus poderia julgar suficiente alguém seguir um falso deus com motivos verdadeiros.

Na história, Emeth faz uma pergunta significativa a Aslam: “Senhor, é verdade, então, como disse o macaco, que tu e Tash sois um só”? A resposta de Aslam é claríssima:

O Leão deu um rugido tão forte que a terra tremeu (sua ira, porém, não era contra mim), dizendo: “É mentira! Não porque ele e eu sejamos um, mas por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode ser prestado a mim, e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto, se qualquer homem jurar em nome de Tash e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo sem saber, e eu é que o recompensarei. E se algum homem cometer alguma crueldade em meu nome, então, embora tenha pronunciado o nome de Aslam, é a Tash que está servindo, e é Tash quem aceita suas obras. Compreendes isto, filho meu”? Eu respondi: “Senhor, tu sabes o quanto eu compreendo”. E, constrangido pela verdade, acrescentei: “Mesmo assim, tenho aspirado por Tash todos os dias da minha vida”. “Amado”, falou o glorioso ser, “não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram”.5

Aslam afirma categoricamente que ele e Tash não se parecem de forma alguma. Na verdade, o leão despreza o demônio! Não há nada em Lewis que indique crer que “todos os caminhos levam ao céu”. Ao contrário, todos os que se encontram no país de Aslam estão lá apenas por um caminho — o caminho de Aslam. Emeth é salvo por Aslam — e por nada mais. Emeth é o único caso excepcional em um relato que envolve milhares de servos de Tash, todos os quais presumivelmente morreram. Emeth aparenta consistir na única exceção esperançosa de Lewis, certamente não na regra.

Um paralelo melhor para Emeth: Cornélio

A Bíblia diz de forma inequívoca: “Aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo” (Hb 9.27). Existem relatos na Escritura de pessoas que continuaram a existir depois de mortas (p. ex., Lc 16.19-31), mas não existe nenhum relato de alguém que decidiu voltar-se para Cristo depois da morte.

Os leitores de A última batalha que creem na Bíblia ficam naturalmente perplexos com a história de Emeth, pois tentam reconciliar o conto com as afirmações ortodoxas de Lewis sobre a salvação, o céu e o inferno. Entretanto, deve-se receber o tipo bíblico do inclusivismo que oferece o evangelho a todos e regozija-se no fato de que pessoas de todas as tribos, nações e línguas adorarão a Deus, juntas, para sempre (Ap 5.9,10; 7.9). Devem-se celebrar histórias como a de Cornélio, cujo serviço Deus aceitou mesmo antes de levá-lo à compreensão completa do evangelho (At 10.2,22,31).

A história de Emeth seria paralela à de Cornélio, se Aslam tivesse vindo ao jovem antes de sua morte. Sem dúvida, ela teria sido minha preferência. Entretanto, até com imperfeições ocasionais, das quais a história de Emeth talvez seja a mais óbvia, as grandes verdades de As crônicas de Nárnia permanecem claras, fortes e bíblicas. Pode-se dizer o mesmo quanto às percepções notáveis sobre o céu e a nova terra nos escritos de Lewis, que eu menciono no capítulo 5, e quanto aos outros discernimentos de Lewis que preenchem este livro e honram o nome de Cristo.

(Às vezes as pessoas me perguntam por que tolero a doutrina meio perturbante de Lewis. Minha resposta é sua trajetória em direção ao evangelho, e não para longe dele, e que Deus o usou para falar à minha vida, com verdades centradas em Cristo que mudaram meus paradigmas. Não preciso aceitar 100 por cento do que Lewis disse para me beneficiar dos 85 por cento que contêm riquezas tremendas).

Pelo fato de nossas escolhas na vida nos transformarem para sempre, quem rejeita a Deus seria tão miserável no céu como no inferno.

Em O problema do sofrimento, C. S. Lewis fala aos opositores da doutrina do inferno:

A longo prazo, a resposta a todos os que se opõem à doutrina do inferno é, em si mesma, uma pergunta: “O que você está querendo que Deus faça?”. Apagar os pecados cometidos por eles no passado e permitir-lhes um novo começo, alisando toda dificuldade e oferecendo toda ajuda milagrosa? Mas ele fez isso, no Calvário. Perdoá-los? Não podem ser perdoados. Abandoná-los? Sim, tenho medo de que é justamente isso que ele faz.6

Ele acrescenta essa afirmação, muito citada: “os perdidos são, de certa forma, rebeldes bem-sucedidos até o fim; [...] as portas do inferno são fechadas por dentro. [...] Eles gozarão para sempre da horrível liberdade que exigiram, e são, portanto, autoescravizados”.7

Se Lewis quis dizer que quem está no inferno se recusa a confiar em si mesmo para buscar a Deus, acho que ele está certo. Ainda que desejem escapar do inferno, isto não equivale a desejar estar com Deus e se arrepender.

Lewis registrou em O grande abismo: “A exigência dos que não são amados e dos prisioneiros de si mesmos, no sentido de que lhes seja permitido chantagear o universo: de que até que consintam em ser felizes (em seus próprios termos) ninguém mais possa provar da alegria. Que o deles seja o poder final; que o Inferno possa vetar o céu”.8

O céu e o inferno são lugares definidos pela presença e ausência de Deus, pela graça ou ira divina. O que determina a nossa miséria ou a nossa alegria é a quem pertencemos, e não onde nos encontramos. Transportar um homem do inferno para o céu não lhe traria alegria, a não ser que tivesse seu relacionamento com Deus transformado — a regeneração, que só pode ser efetuada pelo Espírito Santo (Jo 1.12,13; 3.3-8; Rm 6.14, 1Co 2.12,14).

Para a pessoa selada para sempre na justiça, Deus permanecerá maravilhoso; para a pessoa selada para sempre no pecado, Deus permanecerá terrível. Se rejeitarmos o melhor dom outorgado pelo santo e gracioso Deus, comprado com seu sangue, resta apenas o inferno.

Lewis também disse em O grande abismo: “Todos os que estão no inferno escolheram-no. Sem essa escolha pessoal não haveria inferno. Alma alguma que desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta”.

A ideia é perspicaz, mas pode ser levada longe demais. Alguém pode desejar a alegria fora de Deus e não a encontrar, é claro, mas entendo que Lewis fale de alguém que sinceramente procura o Deus verdadeiro, a fonte de toda a alegria. Vemos indícios disso em Jeremias 29.13: “Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração”. E em Mateus 7.7: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”.

Creio que Lewis, que amava grandes histórias, concordaria que o inferno é um lugar sem história ou enredo — o sofrimento contínuo unido ao tédio eterno. Ironicamente, Satanás tenta retratar o céu, de onde foi expulso, como chato e indesejável. A Bíblia, ao contrário, descreve os novos céus e a nova terra como o ambiente onde teremos alegria sem fim. Se pensarmos com correção sobre o céu, perceberemos que por ser Deus infinitamente grande e gracioso, o céu é a aventura máxima, enquanto o inferno é o atoleiro final.

Talvez seja melhor deixar Lewis concluir com suas próprias palavras: “Entrar no céu é tornar-se mais humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar no inferno é ser banido da humanidade”.9

 

1 São Paulo: Vida, 2001, p. 69.

2 O problema do sofrimento. São Paulo: Vida, 1986, p. 85.

3 Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2002, p. 76.

4 Introductory Papers on Dante. London: Methuen, 1954, p. 44.

5 A última batalha. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 260-1.

6 São Paulo: Vida, 1986, p. 63.

7 Ibid., p. 62.

8 P. 76.

9 O problema do sofrimento, p. 61.

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Randy Alcorn (@randyalcorn) is the author of over sixty books and the founder and director of Eternal Perspective Ministries